O trajeto para um mundo mais inclusivo
Numa sociedade que se foca em ver a "deficiência e não se ver as eficiências", Marisa Maganinho procura combater o preconceito.

Marisa Maganinho sempre teve uma inclinação para o jornalismo. No entanto, quando ingressou no ensino superior, decidiu aventurar-se no curso de Língua Gestual Portuguesa. A escolha, baseada num "vou ver no que é que é que isto dá", levou-a àquilo que é hoje. De aluna passou a professora, criou a Euvoo - Sem limites, uma agência de viagens especializada em turismo acessível, e encontra-se agora a tirar o curso de intérprete de língua gestual. Em entrevista, explorou a crescente importância de um mundo mais inclusivo. *
Quem é Marisa Maganinho?
Sempre teve uma inclinação para o Jornalismo. No entanto, quando ingressou no ensino superior, decidiu aventurar-se no curso de Língua Gestual Portuguesa. O que é que levou a esta mudança de rumo?
Na verdade, não tenho assim uma resposta óbvia, porque, realmente, eu sempre quis mesmo jornalismo... Simplesmente vi um vídeo da Escola Superior de Educação de Coimbra e a minha reação foi "olha que engraçado, isto deve ser uma coisa gira" e fiquei a pensar naquilo. Portanto, houve ali qualquer coisa que me disse "Marisa vai". E foi mesmo sem muito pensamento, sem muita reflexão, foi "olha, vou ver no que é que é que isto dá".
De aluna passou a professora. Como é ensinar Língua Gestual Portuguesa?
Eu, pessoalmente, sempre tive uma queda muito grande para o ensino, sempre achei que teria algum perfil para poder transmitir os meus conhecimentos a outras pessoas. Há medida que também fui fazendo o curso, fui conhecendo um bocadinho a história da comunidade surda. Tudo isto que estava à volta do que era o mundo da surdez ainda me entusiasmou mais.
Ensino outras coisas além da língua gestual, mas adoro lecionar Língua Gestual Portuguesa. Até porque, normalmente, quem vem para estes cursos também vem com outra motivação, são pessoas que realmente estão interessadas e isso, pensando que não, também ajuda muito o nosso papel enquanto professores.
O papel da língua gestual em Portugal
Se, por um lado tem motivação para ser professora, por outro lado, como é que os professores de Língua Gestual Portuguesa são recebidos em Portugal?
Bem, está aqui assim uma dualidade muito grande, principalmente porque, no ramo de Língua Gestual Portuguesa, existem professores que são surdos e professores que são ouvintes. E há aqui algum atrito por se achar que os professores ouvintes acabam por roubar um bocadinho daquilo que é o trabalho dos professores surdos. No entanto, de uma forma genérica, eu acho que somos bem-vistos...
Acho que, efetivamente, o nosso papel é valorizado. Se é tão valorizado quanto deveria ou quanto gostaríamos que fosse? Isso aí já é outra conversa... No entanto, eu acho que nós estamos bem vistos em Portugal...
Encontra-se agora a tirar o curso de intérprete de língua gestual. Para quem não sabe, quais são os lugares dos intérpretes de língua gestual em Portugal?
Um intérprete de língua gestual pode estar em qualquer lugar, desde que seja necessário estabelecer uma ponte de comunicação entre alguém que seja ouvinte e que não saiba língua gestual e uma pessoa que seja surda. Portanto, o lugar do intérprete de língua gestual pode ser num programa de televisão, pode ser numa escola, pode ser numa ida ao médico, pode ser numa repartição das finanças, pode ser numa peça de teatro... Portanto, o lugar do intérprete é onde for realmente preciso...
A desconstrução do preconceito
Em entrevista, referiu que "o mundo dos surdos é um mundo de silêncio com muito barulho ao mesmo tempo". Explicou assim que, contrariamente ao que algumas pessoas pensam, a vida dos surdos é cheia de vida. Perante esta afirmação, sente que ainda existe muito preconceito para com a comunidade surda?
Sim, sem dúvida... Há ainda muito desconhecimento do que é efetivamente ser surdo... Há ainda muita gente a achar que o ser surdo está relacionado com uma perda auditiva por causa da idade. E há também outro pensamento, que não acontece de uma forma tão direta, mas que acontece, que é achar-se que a pessoa que é surda, pelo facto de ter determinadas dificuldades, poderá, eventualmente, ter alguma deficiência intelectual. Isso está efetivamente errado!
Há ainda muito preconceito em relação ao que é isto da comunidade surda e há muita ideia de se ver só aquilo que é negativo, de se ver só, como eu costumo dizer, a deficiência e não se ver as eficiências.
A Marisa tem convivência com a comunidade surda, nomeadamente no seu seio familiar. Pode exemplificar algum momento preconceituoso pelo qual passou ou presenciou?
Por
exemplo, uma situação em que necessitava de uma documentação em específico por
parte de uma entidade, a Via Verde, e, como estava em nome do meu marido, eu
pedi e foi-me recusada por causa da perceção de dados. E, tendo em conta que o
meu marido não podia falar ao telefone, ou seja, eles não tinham nenhum serviço
de apoio, aquilo que aconteceu é que nós não conseguimos a documentação que
necessitávamos.
Ir de Coimbra a Viseu por causa de um documento que, para mim, me chegaria em dois minutos ao meu e-mail, é extremamente preconceituoso.
Segundo a Constituição da República, todos têm "o direito de informar, de se informar e de ser informados". Visto o seu interesse inicial no jornalismo, acredita que Portugal mantém a sua palavra e faz um esforço para comunicar de igual forma com as pessoas com necessidades especiais?
Não! Eu acho que se tem dado alguns passos nesse sentido, mas a verdade é que estamos em pleno século XXI e há muitas situações de acesso à informação que ainda hoje limitam.
Basta olharmos para a situação em que atualmente vivemos, a Covid-19, onde as primeiras conferências de imprensa, por exemplo, não tinham intérprete de língua gestual. Nos primeiros dias, a comunidade surda não teve acesso ao panorama nacional. Portanto, não sabia efetivamente o que é se estava a passar. Acho que os passos estão a ser dados, mas realmente há ainda uma longa jornada para se fazer.
Perante o contexto pandémico, os intérpretes de língua gestual ganharam mais visibilidade. Em entrevista, referiu que se gerou alguma polémica em torno da temática. No entanto, foi precisamente por esta polémica que o tema acabou por estimular a discussão do seu papel na sociedade contemporânea. Acredita que esta visibilidade é "temporária" ou o início de um caminho mais inclusivo?
Eu acho que, efetivamente, a questão da Covid-19, veio-nos trazer algumas coisas boas e algumas coisas más, mas a verdade é que nos veio trazer aqui um destaque que antes não tínhamos, que os intérpretes de língua gestual não tinham. No entanto, sou muito sincera, tenho algumas dúvidas que isso realmente aconteça, porque nós, portugueses, temos a memória um bocadinho curta... Espero estar enganada, mas vamos ver, o tempo dirá.
Euvoo - Sem Limites, uma agência de viagens para todos
Também a Marisa procura criar vias de acesso mais inclusivas. Desta forma, é responsável pela plataforma Euvoo - Sem Limites, uma agência de viagens para todos. De onde surgiu a ideia de criação de uma agência de viagens especializada em Turismo Acessível?

Esta ideia surgiu juntamente com o meu marido, porque nós gostamos muito de "turistar" e percebemos que, cada vez que íamos fazer um roteiro, cada vez que queríamos fazer uma determinada visita em específico, tínhamos sempre barreiras, sempre uma coisa que não podíamos visitar... Porque, ou eu tinha que fazer o papel intérprete e interpretar para ele e isso significava que eu estava a trabalhar para ele e não estava a usufruir, ou então ele não usufruía, estava eu a usufruir e estava ele olhar para mim. Aquilo que acontecia era que nós nunca conseguimos estar em uníssono, ao mesmo tempo, a desfrutar.
Portanto, não era justo, nem para um nem para o outro. Então, começamos a perceber - "Bem, mas porquê? Porque é que isto acontece? Será que não existe solução? O que é que nós podemos começar a fazer?". E começamos a perceber que, realmente, existia mercado para isto. Percebemos que, se calhar, este conceito "viagens para todos", o poder organizar a mesma viagem, mas com uma logística adaptada a determinadas necessidades, era viável e, depois de algum trabalho de estudo, de formação, de nos capacitarmos para podermos estar à altura, percebemos que realmente tínhamos que avançar e avançamos.
Apesar de ser uma pergunta quase de resposta direta, quais são as principais diferenças entre o turismo convencional e o turismo inclusivo?
Eu diria que o turismo convencional é um turismo que está pronto, ou seja, eu quero ir, mas se tiver uma pequena limitação, algo que não me permita, é o que temos, não conseguimos alterar. O turismo acessível permite que nós mudemos. Eu costumo dizer que acaba por ser uma bola de plasticina e nós moldamos à necessidade daquilo que o nosso cliente pretende.
Para finalizar esta entrevista, num tom mais leve, qual é a sugestão turística inclusiva que nos deixa?
Bem, há várias... Posso referenciar em Coimbra... O Museu Machado de Castro já tem uma oferta vasta em termos de inclusão, ou seja, já com vários formatos, não só de alterações arquitetónicas, que permitem a acessibilidade, mas também naquilo que é a parte de comunicação.
Estamos a dar os primeiros passos, os poucos que ainda demos são passos bons, são passos que mostram realmente aquilo que é a nossa fibra, aquilo que nós queremos fazer, aquilo que são as nossas convicções e, portanto, certamente, trará frutos e, aos pouquinhos, chegaremos lá.
* NOTA: Tendo em conta a temática desta entrevista, a inclusividade e, consequentemente, a acessibilidade, este trabalho foi feito, também ele, o mais inclusivo possível. Desta forma, toda a entrevista é acompanhada pelo áudio respetivo.